(Is 6,1-8; Sl 137[138]; 1Cor 15,1-11; Lc 5,1-11)
1. A página que Lucas nos oferece nesse
domingo é composta por três quadros distintos, quase como uma sequência
cinematográfica ambientada no lago da Galileia e caracterizada por alguns
elementos fixos: barca, peixe, redes e pescadores.
2. A primeira cena nos apresenta Jesus
como Mestre da multidão que está ao seu redor, subindo numa barca para melhor
projetar a sua voz e ser visto. Depois da pregação vem o milagre da pesca
‘insólita’. Esta produz uma transformação na vida daqueles homens. Deixam tudo
para seguir Jesus.
3. Para além desses elementos
exteriores mais aparentes, tem um elemento comum fundamental nos três episódios
em rápida sucessão: a palavra, ou melhor, a força da palavra.
4. O protagonista é sempre Jesus com a
força de sua palavra eficaz, transformadora. O milagre é precisamente o de uma
Palavra que traz em sim potência, vida, energia. É a mesma palavra que ensina,
que provoca o milagre e que chama os discípulos.
5. É sobretudo no episódio central, da
pesca milagrosa, que aparece em plena evidência força da Palavra. Depois que
Pedro deixa calar a voz da experiência e do insucesso é que o milagre vem, por
assim dizer, antecipado. O verdadeiro milagre é essa confiança numa palavra sem
igual; de uma rede lançada sob uma palavra.
6. O nosso tempo, inundado de rios de
palavras, parece ter perdido a atenção a essa Palavra, e inevitavelmente
diminui a fé nas palavras. Nossa mentalidade ocidental nos leva a considerar a
palavra exclusivamente como veículo do pensamento do que queremos exprimir.
7. Para o espírito hebraico, a palavra
é algo mais que um veículo de uma ideia. A palavra é veículo de uma força. A
mentalidade semita concebe a palavra como uma realidade viva, que tem em si
força, movimento, atividade. É uma palavra ação, que faz acontecer.
8. Podemos assim compreender, nesta
perspectiva, a importância que tinham as bênçãos e as maldições para os
orientais. Quando vinham pronunciadas, tornavam-se irrevogáveis, eficazes.
9. A palavra de Deus não é só
ensinamento, é também ordem, imperativo, ato criador, como nos diz o Gênesis.
Jesus fala e sua palavra faz curar o doente, cessar a tempestade, multiplicar
os pães, perdoa os pecados, as redes se enchem de peixes, os mortos tornam a
viver. Uma palavra que sempre produz algo, não volta vazia (cf. Is 55,10-11).
10. É quando nos damos conta como hoje
esvaziamos as palavras da sua verdade essencial, da sua realidade mais íntima,
da sua força desconcertante. Desconsagramos as palavras. Tratamo-las às
pressas. E por isso nosso tempo se tornou cansado das ‘palavras’. Dizemos:
queremos fatos, não palavras.
11. Precisamos recolocar as nossas
palavras ‘desgastadas’ ao lado da Palavra sempre nova, que é vida. Permitir que
a nossa vida seja colocada em discussão por esta Palavra única. Talvez assim
nossas palavras voltem a dizer alguma coisa, e voltem, sobretudo, a serem
‘fatos’, não conversa fiada. O mundo precisa de palavras, porque precisa de
fatos.
Pe. João Bosco Vieira Leite