(Is 52,13—53,12; Sl 30[31]; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1—19,42)
1. A sexta-feira santa sempre nos
reserva o evangelho de João, que em sua profundidade teológica/espiritual nos
obriga a algum corte no texto para nossa meditação. Tomo alguns pontos do
comentário do Cardeal Gianfranco Ravasi à cena da Mãe e do discípulo ao pé da
Cruz.
2. Tomemos esse fio de recordação que
Maria e João, o discípulo amado, que a tradição identifica como o próprio autor
do evangelho, nos deixou daquela hora trágica.
3. Qual o valor deste gesto extremo de
Jesus de entregar sua Mãe ao discípulo e o discípulo à sua Mãe? Seria uma
preocupação com a sobrevivência de Maria? Ou há um significado mais profundo,
revelando-nos uma nova maternidade espiritual de Maria?
4. Segundo os padres da Igreja,
tratava-se de uma reafirmação da virgindade de Maria, desprovida de outros
filhos a quem confiar-se. Seria Maria um símbolo da Igreja que João deveria
cuidar? Ou o contrário? São muitas as interpretações que giram em torno dessa
cena.
5. Muitas vezes permitia-se aos
parentes, aos amigos e aos inimigos de uma pessoa crucificada acompanhar as
últimas horas daquela atroz agonia. Com Maria e João havia outras mulheres, mas
o objetivo de João se fixa em dois rostos.
6. O 1º é o de Maria, o 2º é o
‘discípulo amado’. Essa expressão de ‘discípulo que ele amava’ talvez não tenha
a necessária intenção de identificar um personagem, mas nos apresentar o
retrato do discípulo perfeito, o verdadeiro fiel de Cristo. O título adquire um
valor simbólico, como acontece muitas vezes nesse evangelho.
7. O evangelista, sobre a cena que se
desenrola aos pés da cruz, quer, portanto, tecer uma imagem ulterior que
ultrapassa os confins daquele lugar e daquele dia trágico.
8. Assim, nas palavras que dirige à Mãe
e ao discípulo, não estamos perante um simples gesto social, num encargo de cuidados,
mas perante a última palavra solene que revela o mistério e o significado
último de uma pessoa.
9. Lembremos que o título solene
‘Mulher’, já utilizado por ele em Caná, nesse jogo de alusões do 4º evangelho,
nos remete para a mulher que está na origem da história humana, reconhecida
como mãe da humanidade inteira; agora Maria torna-se o início de todos os
crentes no seu Filho.
10. Maria surge agora em nova função
materna, a função de ser mãe de todos os fiéis, símbolo da Igreja que gera
novos filhos e irmãos para o Pai e para Cristo e os protege do mal, como a
mulher do Apocalipse que escapa do dragão.
11. Ela vive a hora do seu Filho. Tal
como Cristo, sofrendo e morrendo gera a salvação, assim Maria, sofrendo e
perdendo tudo, torna-se mãe da Igreja. Assim, Jesus apresenta ao discípulo
amado, símbolo dos crentes, a sua mãe espiritual.
12. “Dessa hora em diante, o discípulo
a acolheu consigo”, diz o texto, mas é mais que uma simples informação. Maria e
o discípulo não só terão a mesma residência como viverão em comunhão de fé e de
amor precisamente como o cristão acolhe e vive em comunhão profunda com a
Igreja sua mãe. Aqui se entrelaçam Mariologia e eclesiologia.
13. Assim concluo com as palavras de um
autor que imaginou “A vida de Jesus narrada por sua Mãe”: ‘Também nós,
pobres mulheres, deixamos o Calvário com João, que a partir daquele momento me
tomou consigo. E nos dias de luto, para me consolar contou-me muitas coisas
acerca d’Ele. Também lhe contei aquelas coisas que, desde a sua primeira infância,
me tinham acontecido por causa d’Ele, e que eu conservava diligentemente no
coração. E conta-las e reconta-las era um modo de continuar a viver com Ele, a
viver d’Ele’. Amém.
Pe. João Bosco Vieira Leite