(Gn 9, 8-15; Sl24/25; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)
01. Já conhecemos bem essa
narrativa da tentação de Jesus e a interpretação das mesmas. Vamos deixar de
lado, por um momento satanás e suas tentações e concentrar-nos sobre essa
informação inicial de que o Espírito Santo conduziu Jesus ao deserto.
02. Aqui está um apelo
importante ao início dessa quaresma. Antes de iniciar sua missão propriamente
dita após o batismo, Jesus obedece ao impulso do Espírito Santo e se retira ao
deserto onde permanece por quarenta dias, jejuando, rezando, meditando, lutando.
Tudo isso em profunda solidão e silêncio.
03. Esse ato de Jesus foi
imitado ao longo da história da Igreja por vários homens e mulheres. E foi esse
retirar-se que deu origem aos chamados padres do deserto, que depois dariam
origem aos mosteiros que contribuíram de um modo decisivo no desenvolvimento
cultural e agrícola da Europa com seu programa: reza e trabalha.
04. Mas o chamado a seguir a
Jesus no deserto não diz respeito somente aos eremitas ou monges que escolheram
o espaço do deserto. Nos deveríamos ao menos procurar um tempo de deserto. Um
tempo de vazio e silêncio em torno a nós, reencontrar a vida do nosso coração,
subtrair-se ao barulho e às solicitações externas, para entrar em contato com
as fontes mais profundas do nosso ser.
05. Esse é o significado
positivo do deserto - diferente daquele de um lugar árido, sem vida, sem
comunicação. Muitas vezes Deus convidou seu povo ao deserto e não era
necessariamente um lugar geográfico.
06. A quaresma é a ocasião que a
Igreja oferece a todos, indistintamente, para fazer um tempo de deserto no
ambiente mesmo em que vivem. Vivida bem, esse é uma espécie de cura de
desintoxicação da alma. Se não existisse uma quaresma seria necessário inventá-la.
07. Em nosso planeta não temos
só a poluição do dióxido de carbono; existe a intoxicação por excesso de
barulho e de luzes. Estamos todos meio embriagados por tudo isso.
08. Não somente os que creem
sentem necessidade de um tempo de recolhimento e de solidão, mas toda pessoa
consciente de ter um espírito, uma alma, ou ao menos uma liberdade para cuidar
e defender. Também o espírito tem direito a férias.
09. Esse ser humano que envia
sondas até a periferia do sistema solar, pode, muitas vezes, ignorar aquilo que
está em seu coração. Evadir, distrair-se, divertir-se: são todas palavras que
indicam um sair de si mesmo, um subtrair-se à realidade. Os jovens são os mais
expostos a embriagar-se dessas coisas.
10. Não podendo ir ao deserto
geográfico, é necessário fazer um deserto dentro de nós. Mas como? A tradição
cristã nos responde com uma palavra: jejum. Não compreendamos aqui tão somente
a questão alimentar que conserva toda sua validade e é altamente recomendável,
quando é feito com espírito de sacrifício, para mortificar a gula e ter
qualquer coisa para partilhar com quem tem fome, e não unicamente para manter a
forma.
11. Mais necessário que o jejum
dos alimentos é o jejum do rumor, do barulho, e sobretudo das imagens. Vivemos
em uma civilização da imagem; nos tornamos uma civilização devoradora de
imagens. Através das novas mídias, da realidade mesma, deixamos entrar várias
imagens em nós.
12. Muitas são maléficas,
veiculam violência e malícia, atiçando os piores instintos que carregamos
dentro. São confeccionadas para seduzir. Mas o pior é que dão uma ideia falsa
ou irreal da vida, com todas as consequências que derivam do impacto com a realidade.
Muito se pretende que a vida ofereça tudo que a publicidade apresenta.
13. Se não criarmos um filtro,
um barramento, reduziremos em breve tempo a nossa fantasia e a nossa alma a um
depósito de lixo. Muitas coisas que nos entram pelos olhos fermentam dentro de
nós. É necessário um controle também sobre o que deixamos entrar pelo
olhar.
14. Entre os jejuns alternativos
está também o da palavra má, que não se limitam aos palavrões. Há palavras que
tolhem, que são negativas, que colocam sistematicamente em evidência o lado
frágil do outro, palavras sarcásticas, irônicas. Na vida em família ou de uma
comunidade, estas palavras têm o poder de fechar a pessoa em si mesma, de
congelar, de criar amargura e ressentimento.
15. E poderíamos nos alongar
nessa reflexão, mas voltando ao início, precisamos fazer um pouco de deserto em
torno a nós, fugir um pouco das ocupações e dos pensamentos tumultuados que nos
assaltam. Atendamos a voz do Espírito. Que Ele nos conduza, nos assista nessa
luta contra o mal e nos prepare para celebrar a Páscoa renovados
espiritualmente.
Pe. João Bosco Vieira Leite