(Gn 16,1-12.15-16; Sl 105[106]; Mt 7,21-29)
12ª Semana do Tempo Comum.
“Portanto, quem ouve
estas minhas palavras e as põe em prática é como um homem prudente, que construiu a
sua casa sobrea rocha” Mt 7,24.
“Se alguém não fica a
sós com a palavra de Deus, ele não lê. Só com a palavra de Deus! Meu caro
ouvinte, vou confessar-te uma coisa: eu não ouso ainda estar absolutamente a
sós com a palavra, numa solidão onde nenhuma ilusão se interponha. E permita-me
acrescentar: não vi jamais um homem que se possa crer que ele teve a
sinceridade e a coragem de estar a sós com a palavra de Deus, numa solidão onde
nenhuma ilusão se interponha... A sós com a Escritura! Eu não ouso. Quando a
abro, a primeira passagem que me cai aos olhos me cativa logo; ela me pergunta
(e é como se Deus mesmo me interrogasse): puseste isso em prática? E desta
maneira eu fico bem comprometido. Assim: ou logo em ação, ou, então
instantemente a humilhação de ter de confessar. Se não fica a sós com a
Escritura, não a lês. Que esta solidão não seja sem perigos, pessoas capazes
implicitamente o reconheceram. Talvez um certo espírito cujas faculdades e
seriedade saem fora do comum dirá de si para si: ‘Eu não poderia agir pela
metade; a Bíblia é para mim um livro perigoso; é tirânico; se lhe dou o dedo,
ele toma a mão, ele me pega por inteiro, e é capaz de refazer toda a minha vida
a uma escala imensa. Não. Sem me permitir para com ele uma só palavra de
escárnio ou de desprezo porque isto me repugna – eu o relego à estante; não
quero estar a sós com ele’. Não aprovamos esta resolução; mas ela implica
inegavelmente uma certa lealdade digna de respeito. Podemos ainda defender-nos
de uma forma toda diferente contra a palavra; fazendo o fanfarrão. Garantimos
que somos perfeitamente capazes de estar a sós com ela, o que é falso. Toma a
tua Bíblia, e fecha a porta – mas mune-te também de dez dicionários e de vinte
e cinco comentários: podes não ler os santos livros tão tranquilamente e sem
mais te incomodares como o jornal... Que triste abusa da ciência, em que é tão
fácil a gente se enganar a si mesmo! Pois, se não houvesse tantas ilusões, e
ilusões sobre si mesmo, cada um confessaria como eu: não ouso estar a só com a
palavra de Deus... É, aliás, humano que a gente se recuse a submeter-se ao
poder da palavra. É humano pedir a Deus que tenha paciência se não podemos
cumprir logo o nosso dever, sob a condição de prometermos que vamos nos
esforçar. É humano implorar a sua compaixão, se a exigência nos parece grande
demais... Mas não é digno do homem trocar totalmente o aspecto da questão. É
indigno que eu interponha todos esses paliativos entre mim e a palavra, dê a
esse aparato crítico o nome sério de zelo pela verdade, e deixe, enfim, esse
trabalho tomar tais proporções que eu não tenho jamais o sentimento de ler a
palavra e não venho nunca a me olhar no espelho. Tenho a impressão que com
todas essas investigações e subtilezas eu atraio a palavra: na realidade, por
esses processos eu a afasto da maneira mais astuciosa, para uma distância
infinitamente maior do que a daquele que jamais a viu, e do que a daquele que
nutre por ela um tal medo e angústia, que ele a rejeita para bem longe... Não
te enganes, pois, nem faças o esperto. Porque já não o somos pouco diante de
Deus e da sua palavra” (Kierkegaard – Para um exame de consciência a
meus contemporâneos – 1851).
Pe. João Bosco Vieira Leite