Quinta, 27 de junho de 2019


(Gn 16,1-12.15-16; Sl 105[106]; Mt 7,21-29) 
12ª Semana do Tempo Comum.

“Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática é como um homem prudente, que construiu a sua casa sobrea rocha” Mt 7,24.

“Se alguém não fica a sós com a palavra de Deus, ele não lê. Só com a palavra de Deus! Meu caro ouvinte, vou confessar-te uma coisa: eu não ouso ainda estar absolutamente a sós com a palavra, numa solidão onde nenhuma ilusão se interponha. E permita-me acrescentar: não vi jamais um homem que se possa crer que ele teve a sinceridade e a coragem de estar a sós com a palavra de Deus, numa solidão onde nenhuma ilusão se interponha... A sós com a Escritura! Eu não ouso. Quando a abro, a primeira passagem que me cai aos olhos me cativa logo; ela me pergunta (e é como se Deus mesmo me interrogasse): puseste isso em prática? E desta maneira eu fico bem comprometido. Assim: ou logo em ação, ou, então instantemente a humilhação de ter de confessar. Se não fica a sós com a Escritura, não a lês. Que esta solidão não seja sem perigos, pessoas capazes implicitamente o reconheceram. Talvez um certo espírito cujas faculdades e seriedade saem fora do comum dirá de si para si: ‘Eu não poderia agir pela metade; a Bíblia é para mim um livro perigoso; é tirânico; se lhe dou o dedo, ele toma a mão, ele me pega por inteiro, e é capaz de refazer toda a minha vida a uma escala imensa. Não. Sem me permitir para com ele uma só palavra de escárnio ou de desprezo porque isto me repugna – eu o relego à estante; não quero estar a sós com ele’. Não aprovamos esta resolução; mas ela implica inegavelmente uma certa lealdade digna de respeito. Podemos ainda defender-nos de uma forma toda diferente contra a palavra; fazendo o fanfarrão. Garantimos que somos perfeitamente capazes de estar a sós com ela, o que é falso. Toma a tua Bíblia, e fecha a porta – mas mune-te também de dez dicionários e de vinte e cinco comentários: podes não ler os santos livros tão tranquilamente e sem mais te incomodares como o jornal... Que triste abusa da ciência, em que é tão fácil a gente se enganar a si mesmo! Pois, se não houvesse tantas ilusões, e ilusões sobre si mesmo, cada um confessaria como eu: não ouso estar a só com a palavra de Deus... É, aliás, humano que a gente se recuse a submeter-se ao poder da palavra. É humano pedir a Deus que tenha paciência se não podemos cumprir logo o nosso dever, sob a condição de prometermos que vamos nos esforçar. É humano implorar a sua compaixão, se a exigência nos parece grande demais... Mas não é digno do homem trocar totalmente o aspecto da questão. É indigno que eu interponha todos esses paliativos entre mim e a palavra, dê a esse aparato crítico o nome sério de zelo pela verdade, e deixe, enfim, esse trabalho tomar tais proporções que eu não tenho jamais o sentimento de ler a palavra e não venho nunca a me olhar no espelho. Tenho a impressão que com todas essas investigações e subtilezas eu atraio a palavra: na realidade, por esses processos eu a afasto da maneira mais astuciosa, para uma distância infinitamente maior do que a daquele que jamais a viu, e do que a daquele que nutre por ela um tal medo e angústia, que ele a rejeita para bem longe... Não te enganes, pois, nem faças o esperto. Porque já não o somos pouco diante de Deus e da sua palavra” (Kierkegaard – Para um exame de consciência a meus contemporâneos – 1851).

Pe. João Bosco Vieira Leite