(Est 5,1-2; 7,2-3; Sl 44[45]; Ap 12,1.5.13.15-16; Jo 2,1-11)
1. Na simples escuta dessa narrativa de João, parece que estamos diante de mais um milagre operado por Jesus, ainda que diferente de tantos outros realizados por Ele. Mas a coisa não é tão simples assim. É preciso um olhar mais atento. O Evangelho de João é um imenso oceano, pode ser contemplado na superfície ou em profundidade.
2. João não usa o termo ‘milagre’, mas sinal. Ao final da cena diz que Jesus manifestou a sua glória. Como assim? João se serve de uma festa de núpcias para nos apresentar Jesus. Essa imagem do matrimônio está muito presente no Antigo Testamento entre os profetas para nos falar da relação entre Deus e o seu povo, em seus altos e baixos.
3. O nome ‘Israel’, que para nós é masculino, em hebraico é feminino. Deus é o esposo, Israel, a esposa. Daí não termos os nomes do casal na narrativa. Então estamos falando de um outro casal, Deus e o seu povo, cuja relação parece não andar bem, na festa falta algo.
4. Então aparece um outro elemento: o vinho, que é símbolo da felicidade e do amor. Uma festa sem vinho torna-se algo pouco animado: aqui é símbolo dessa relação pouco alegre entre Deus e seu povo; não por Ele, mas pela esposa, que parece constrangida sob o peso da Lei. Ouviremos Jesus falar dessa situação muitas vezes em seus debates com as autoridades religiosas do seu tempo.
5. Temos as talhas com água que serviam para as purificações necessárias a um povo cujas transgressões eram inevitáveis; para isso foram inventados ritos de purificação. Jesus traz uma água nova, que será o desejo da samaritana, para estabelecer novas relações.
6. Em resumo, nesse texto cheio de camadas: João está dizendo para nós que essa relação entre Deus e o seu povo está sendo renovada pela presença de Jesus, de Deus mesmo, no meio do seu povo. Mas temos aqui a presença da mãe de Jesus, cujo nome nem saberíamos, se não fosse os outros evangelhos.
7. A mãe de Jesus pode ser Maria sim, mas pode indicar também a comunidade espiritual, dizem alguns estudiosos, na qual Jesus nasceu e na qual foi educado. Na passagem de hoje representa certamente as pessoas piedosas de Israel, aquelas que por primeiro perceberam que a situação religiosa em que viviam era insustentável.
8. O que fazem então? Não recorrem ao mestre-sala, isto é, aos chefes religiosos que deram provas de incapacidade na organização de uma festa autêntica, mas a Jesus. Compreendem que só dele pode vir a água viva que, em quem bebe, transforma-se em vinho, ou seja, torna felizes.
9. A espiritualidade mariana nos leva a imitar essa atitude de Maria em relação ao ‘vinho novo’ trazido por Jesus. Quem pretende perpetuar uma certa religiosidade do passado não se abre à novidade, aos impulsos do Espírito, certamente não está em sintonia com as disposições de ânimo de Maria.
10. Tradicionalmente o nosso evangelho é aplicado ao papel de intercessão que exerce Maria no plano da salvação e que aqui também nos convida a fazer o que Ele nos disser. É justamente essa atitude de escuta obediente que transforma a água em vinho, que faz nova todas as coisas. Só assim o milagre é possível.
Pe. João Bosco Vieira Leite