(Gn
12,1-4; Sl 32[33]; 2Tm 1,8-10; Mt 17,1-9)
1. O episódio da Transfiguração se dá
logo depois do primeiro anúncio da Paixão por parte de Jesus. Esse programa de
viagem em direção a Jerusalém, em direção à cruz, deixa os discípulos sem
fôlego. Eles reconheceram quem é Jesus, enquanto Messias, mas encontram estrema
dificuldade em seguir sua estrada.
2. Este que foi ‘enviado pelo Pai’,
segundo eles, deveria fazer uma viagem triunfal, mas Jesus desmonta seus
esquemas mentais. É nesse contexto de medo, incerteza e dúvida que Jesus insere
uma ‘pausa luminosa’. Para ajuda-los a superar o escândalo da Cruz,
antecipa-lhes algo da luz futura, da ressurreição.
3. Essa compreensão está na base da
intepretação desse texto do 2º domingo quaresmal. Mas vamos recolher, da
riqueza desse episódio, alguns elementos significativos para nossa aventura
cristã.
4. O primeiro elemento é o mistério de
Cristo. Um mistério, que por assim dizer, tem duas faces: uma luminosa e outra
obscura: cruz e glória, descida e exaltação, fraqueza e força, fracasso e
triunfo. Toda a pedagogia de Jesus em relação aos discípulos consistia em
fazê-los aceitar a ‘passagem’ obrigatória.
5. Essa ‘passagem’ à glória se dá
através da cruz, à luz da páscoa através das trevas da Sexta Santa. Mesmo pra
nós, é necessário admiti-lo honestamente, é difícil aceitar esta ‘passagem’.
Somos de acordo quanto ao fim, mas gostaríamos de propor um outro caminho.
6. Difícil digerir essa sabedoria de
Deus que se manifesta na cruz, essa fragilidade como ‘lugar’ onde se manifesta
a força de Deus. O mistério de Cristo deve ser acolhido em sua totalidade
desconcertante. Não é lícito escolher a ‘face’ mais simpática, que corresponde
ao nosso gosto, abandonando a outra.
7. Esses três que contemplam o mistério
do Cristo luminoso, são os mesmos três que são chamados a participar com Ele da
dramática manifestação do Getsêmani, contemplando-o envolto na obscuridade,
presa do medo e da angústia, na solidão angustiante. O cristão sabe reconhecer
as duas realidades.
8. Temos o simbolismo da montanha,
lugar da aproximação de Deus, onde Ele se revela. Moisés e Elias bem o sabem.
Ela é símbolo dessa necessidade de tomar distância- uma distância interior – do
nosso cotidiano, da nossa agitação, do barulho, para experimentar a paz da
oração, do silêncio, para reencontrar-nos com nós mesmos e perceber a voz que
nos interpela.
9. A voz é o ponto culminante dessa
narrativa da Transfiguração, não o esplendor que envolve Jesus. Essa mesma voz
que se ouviu no Batismo e se ouvirá na vigília da Paixão. Uma voz que exprime a
investidura do alto, o reconhecimento da parte do Pai. ‘Escutai-o’.
10. O discípulo não é alguém da visão,
mas da escuta. Não se trata tanto de ver, de tocar o Senhor. O essencial é
escutar sua voz, tomar seriamente sua mensagem, deixar-se questionar por suas
palavras. Escutar não para saber mais, para satisfazer a curiosidade, mas para
obedecer, tomar consciência do próprio papel em Deus e no mundo. Toda
transformação é fruto de uma escuta contínua da Palavra.
11. Sabemos que a tenda, pensada por
Pedro, exprime dois equívocos: uma espécie de tentativa de ‘segurar’ a Cristo,
apropriar-se egoisticamente, limitá-lo em sua missão que findará na cruz. O
outro é confundir a pausa com o final. Prologar ao infinito algo que deve
servir para colocar-nos a caminho.
12. É bom estarmos aqui. Mas viemos
para retornar. Já nos demos conta que nossa fé é uma mistura de luz e
obscuridade. De certezas e dúvidas. De consolação e temor. De paz e de
asperezas. Sim, precisamos subir à montanha, tanto quanto precisamos da coragem
de voltar.
13. Buscamos a luz porque não estamos
satisfeitos com nossa própria face. Precisamos refazê-la à luz do rosto de
Deus. Para eliminar os sinais do medo, do egoísmo, da preguiça, da indiferença,
da dureza, do orgulho.... Queremos ser restaurados, e voltar. Muitos esperam
pela nossa restauração. Mas não a buscamos tanto por eles, mas por nós mesmos.
2º Domingo da
Quaresma – Campanha da Fraternidade 2023 (Texto Base)
Ao falar da vida eterna, Jesus utilizou a imagem do banquete (Mt 22,2),
mostrando-nos que o desejo do banquete eterno deve se traduzir em atitude de
compromisso com uma sociedade em que o alimento esteja em todas as mesas. Jesus
teve compaixão da multidão faminta (Mt 14,14-21). Embora os discípulos
apontassem a solução de deixar o problema nas mãos de quem corria o risco da
fome, Jesus abre os olhos e os corações destes mesmos discípulos para que não
se justifiquem diante da impossibilidade, mas compreendam que a mudança da
realidade começa com eles, em escuta ao Senhor, que lhes ordena darem, eles
mesmos, à multidão, o que comer. Jesus indica outra maneira de compreender as
interpelações que a vida nos traz. Ultrapassando a lógica imediata, Ele aponta
para a necessidade de agir conjuntamente, ainda que as dificuldades sejam
grandes e os recursos pequenos. Quando acolhemos o mandamento do Senhor, nosso
modo de compreender os desafios torna-se outro e o resultado é infinitamente
maior.
Que, portanto, esta Quaresma seja vivida em forte espírito de solidariedade.
Que nosso jejum abra nosso coração aos irmãos e irmãs que sofrem com a fome.
Que nossa solidariedade seja intensificada. Que saibamos encontrar soluções
criativas para a superação da fome, seja no nível imediato, assistencial, seja
no nível de toda sociedade. Que efetivamente se cumpra a responsabilidade dos
governantes, em seus diversos níveis, concretizando políticas públicas,
principalmente as de estado, que atinjam a raiz deste vergonhoso flagelo, garantindo
não apenas a produção de alimentos, mas também que eles cheguem a cada pessoa,
em especial as mais fragilizadas. Que o Senhor Jesus nos possa dizer: “Vinde,
benditos de meu Pai, eu estava com fome, e me deste de comer; todas as vezes
que fizeste isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que
fizeste!” (Mt 25,34.40).
Pe. João Bosco Vieira Leite