(Eclo 3,3-7.14-17; Sl 127[128]; Cl 3,12-22; Mt 2,13-15.19-23) *
1. Aproveitando essa festa da Sagrada Família quero refletir um pouco sobre essas relações fundamentais que, em seu conjunto, constituem a família: a relação marido e mulher, e a relação pais e filhos a partir da 2ª leitura. No casal temos o amor de uma parte e a solicitude da outra. Entre pais e filhos a paciência e obediência.
2. Das duas relações a mais importante é a primeira porque desta depende em grande parte a segunda, aquela com os filhos. Dois genitores podem amar muito seus filhos, mas se eles não se amam, nada poderá impedir a criança de crescer insegura na vida.
3. Comumente, quando os esposos não se amam mais, cada um busca direcionar seu afeto para o filho, buscando inconscientemente ligá-lo a si. Mas não é isso que a criança intimamente deseja. Ele não deseja ser amado com um amor diferente e à parte; deseja, ao contrário, que os pais se amem. Pois sabem que é desse amor que são nascidos e se esse se interrompe é como se lhes viesse a faltar o chão.
4. Ao falar do amor do marido e da solicitude da esposa, o texto parece soar estranho aos nossos tempos não só pela igualdade entre os sexos, mas também por essa onda de “empoderamento” feminino. Em parte, como sabemos, Paulo está condicionado à mentalidade do seu tempo.
5. Na realidade tanto o amor como a solicitude devem ser recíprocos. Pois a solicitude é um aspecto e uma exigência do amor. Isso significa ter em conta a vontade do cônjuge, sua opinião e sua sensibilidade; dialogar, não decidir sozinho, saber renunciar ao próprio ponto de vista. Enfim, recordar que se tornou “cônjuge”, isto é, literalmente, pessoas que estão sob “o mesmo jugo” livremente escolhido.
6. A imagem pode parecer um pouco inadequada, mas imaginem dois bois sob o mesmo jugo que não coordenam seus movimentos, mas cada um quer seguir por sua conta, acelerando ou parando, indo para direita ou para esquerda, sem levar em conta o outro. Seria algo cansativo, desgastante, para ambos.
7. A Bíblia nos diz que homem e mulher foram criados a imagem e semelhança de Deus, que não é nem macho nem fêmea. Em que consiste essa semelhança? O Deus do cristianismo é uno e trino. Nele temos unidade e distinção: unidade de natureza, de vontade, de intenção, e distinção de características e de pessoas.
8. Da mesma forma, num casal, se conciliam entre eles unidade e diversidade entre um “tu’ e um “eu” que se transforma num “nós”, quase como se fosse uma só pessoas, não singular, mas plural.
9. Sabemos que este seria o “ideal” e que, como em todas as coisas, a “realidade” é muito diversa, mais humilde e complexa, e por vezes, trágica. Somos bombardeados de muitos casos negativos, mas nem por isso deixamos de repropor o ideal do casal, não só sob o plano natural e humano, mas também cristão. O ideal tem sua força de atração.
10. Ao processo natural de união de um homem e uma mulher, a fé cristã acrescenta a “graça” sacramental. Algo esquecido e reduzido a um significado profano. A graça vem da cruz de Cristo, que não destrói nem suplanta a natureza, mas a realça, a eleva, restaura e fortifica, dá razões novas para superar as dificuldades. Resgata de um possível falimento.
11. Isso significa abrir-se a ação do Espírito Santo, que renova nesses a capacidade e a alegria de doar-se um ao outro. Assim o matrimônio vem santificado não por algo externo, pelo rito celebrado, ou sobre a água benta sobre as alianças, mas em si mesmo, no seu gesto mais íntimo.
12. Ao dar-se um ao outro, o casal reflete o amor fecundo que existe na Trindade. Assim, a palavra de Deus não quer só dá uma ética, indicações morais sobre numerosos problemas ligados à vida de um casal e sobre a criação dos filhos, mas propor também uma espiritualidade, como diz Paulo ao início do seu texto.
13. De todos esses maravilhosos conselhos gostaria de sublinhar um em particular: o perdão recíproco. Conheço alguns casais que tomaram para si como programa de vida matrimonial as palavras de Paulo: “Não se ponha o sol sobre o vosso ressentimento” (Ef 4,26). Ou seja, não dormir sem antes resolver alguma discussão ou contraste surgido durante o dia.
* Com base em texto de Raniero Cantalamessa.
Pe. João Bosco Vieira Leite