(Lc 19,28-40; Is 50,4-7; Sl 21[22]; Fl 2,6-11; Lc 23,1-49)*
1.
No século XII surgiu uma devoção às sete últimas palavras de Jesus. Suas
últimas palavras na cruz, se tornaram assunto de meditação. Essas últimas
palavras foram comentadas por São Boaventura e popularizadas pelos
franciscanos.
2.
As últimas palavras têm um fascínio especial. Os seres humanos são animais
falantes. Para nós, estarmos vivos é estar em comunicação. A morte não é apenas
a cessação da vida corporal. É silêncio. Então o que dizemos diante do silêncio
iminente é revelador.
3.
Assim tomamos essa Palavra de Deus pronunciada em face ao silêncio. Sendo
cristãos, cremos que tudo que existe é sustentado por essa Palavra que existia
desde o princípio. É o sentido de toda a nossa vida. Vou tomar essas palavras,
nesse ano e no próximo, se Deus permitir, como base de nossas reflexões da
Semana Santa.
4.
As últimas palavras de Jesus podem alojar-se em nosso coração e mente e
sustentar-nos seja no que for que enfrentemos: fracasso, perda, silêncio e
morte.
5.
A primeira palavra de Jesus na cruz é dirigida ao Pai. As palavras que Jesus
nos dirige estão conservadas dentro desse relacionamento com o Pai, exatamente
como é lá que encontraremos nosso lar, dentro da vida da Trindade.
Aconchegamo-nos dentro dessa divina conversa.
6.
“Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem!” A primeira palavra que nos é
dada é de perdão. O perdão acontece antes da crucificação, antes dos insultos e
da morte. O perdão vem sempre primeiro. Eis o escândalo do Evangelho.
7.
Mas isso não significa que Deus não leva a sério o que fazemos. Deus não se
esquece que crucificamos seu Filho. Não tiramos isso da cabeça. Na verdade, na
Sexta-feira Santa nos reunimos para prestar atenção, à paixão e morte de Cristo
e lembrar que a humanidade rejeitou, humilhou e matou o Filho de Deus. É por
causa do perdão que ousamos nos lembrar dessa ação terribilíssima. Perdão não é
esquecer.
8.
O perdão significa que ousamos enfrentar o que fizemos. Ousamos nos lembrar de
toda a nossa vida, com os fracassos e defeitos, com nossas crueldades e falta
de amor. Ousamos nos lembrar de todas as vezes que fomos mesquinhos e pouco
generosos, a feiura de nossas ações.
9.
Ousamos nos lembrar, não tanto para nos sentirmos detestáveis, mas para
abrirmos nossa vida para essa transformação criativa. Isso não nos deixa como
somos, como se nada que fizéssemos tivesse importância. Se entrarmos nesse
perdão, ele nos mudará e transformará.
10.
Tudo que é infecundo e seco dará frutos. Tudo que é sem sentido encontrará
sentido. No final de “Senhor dos Anéis”, Sam espalha ao redor do
condado improdutivo o fertilizante mágico que os duendes lhe deram e na
primavera seguinte todas as árvores floresceram. É uma imagem do perdão.
11.
Jesus pede perdão não apenas pelo que lhe fazem. Ele não é crucificado sozinho.
Há duas pessoas, uma de cada lado, que representam todas as milhões de pessoas
que crucificamos desde o princípio da história.
12.
Quem são as pessoas que crucificamos agora, com nosso imperialismo econômico
que produz tanta pobreza? Quem crucificamos por meio da violência e da guerra?
Quem ferimos até dentro de nossos lares? Porque sabemos que o perdão vem
primeiro, então ousamos abrir os olhos.
13.
Dizem que Michelangelo achou um feio pedaço de mármore que outro artista
tentara esculpir, mas fracassara e arruinara a pedra. Michelangelo esculpiu
nela seu famoso Davi. É isso que o perdão divino faz de uma forma que está para
além do nosso entendimento. Perdão significa que nossos pecados encontram lugar
em nosso caminho para Deus. Nenhum fracasso precisa ser um beco sem saída.
* Reflexão com base em texto
de Timothy Radcliffe.
Pe.
João Bosco Vieira Leite