(Am 6,1.4-7; Sl 145[146]; 1Tm 6,11-16; Lc 16,19-31) *
1. Acabamos de escutar a parábola também conhecida como do rico epulão e do pobre Lázaro. Antes de qualquer coisa é importante saber que estamos diante de uma parábola, não de uma história real, ainda que inspirada numa situação concreta. O nome Lázaro, dado ao pobre, serve apenas a dar maior consistência e vivacidade.
2. As tais ‘sobras’ que caiam da mesa do rico eram pedaços ou miolo de pão que servia para mergulhar no molho ou limpar os dedos e depois eram jogados ao chão. O fato dos cães lhe lamberem as feridas não lhe causava alívio, mas piorava a situação de um mendicante que, provavelmente paralítico, não os podia afastar.
3. Mas fiquemos nessas simples observações, para não corremos o risco de passar todo o tempo tentando resolver problemas filológicos marginais e esquecendo a mensagem central e findando por neutralizar a sua carga revolucionária e inquietante.
4. O elemento principal a ser colocado em evidência na parábola é a sua atualidade; mostrar como essa situação se repete também hoje, em meio a nós, em dois níveis: mundial e nacional. Poderíamos pensar de maneira global, as diferenças entre o hemisfério norte e o sul. 1º e 3º mundo.
5. Mas esse mesmo contraste se repete, em escala diferente, ao interno desses dois hemisférios. Ricos e pobres vivendo lado a lado. Mesmo em nosso país, como em toda a sociedade do “bem-estar”, há pessoas do mundo do espetáculo, do esporte, da finança, da indústria, do comércio, que ganham milhões.
6. Tudo isso diante do olhar de milhares de pessoas que não sabem como vão chegar, com o salário que ganham ou auxílio desemprego, pagar o aluguel, o remédio, o colégio dos filhos, etc. O que mais nos incomoda na história narrada por Jesus é a ostentação do rico. Seu luxo se dá em dois âmbitos: no comer e no vestir.
7. O contraste não é só entre quem se entope de comida e quem passa fome, mas também entre quem muda de roupa a cada dia e quem não tem o que trocar ou vestir. Em alguns lugares, o que mais humilha o pobre ali não é tanto não ter o que comer (isso se dá no âmbito interno, da casa e ninguém o sabe), mas sair, ou mandar os próprios filhos como maltrapilhos.
8. Talvez fiquemos assustados, ou nos ponhamos a pensar, quando em certos desfiles de moda, alguém se apresente com pedrarias e outros materiais caros numa roupa que custa mundos e fundos. Por vezes vemos mandadas aos ares as leis da moral e do bom senso. Essa observação não é nenhuma novidade.
9. Mas toda a parábola é vista como uma retrospectiva de um final de história. Como alguns filmes, poderíamos começar do desfecho e voltar a ele em flashback. Morre primeiro o pobre, pois está em desvantagem, depois o rico, que pode pagar tudo, mas não pode fugir da morte. Morrem os dois, com fins diversos.
10. Certamente não é intenção de Jesus nos dar uma descrição topográfica do que acontece no outro lado. Sua narrativa é uma adaptação das ideias que tinham os que o escutavam, para assim melhor fazer-se entender. Lázaro e o rico parecem estar muito próximo e falam entre si.
11. Se olharmos bem, aqui estão os elementos essenciais. O seio de Abraão é um lugar de consolação e de felicidade; o rico está num lugar de tormento. Um abismo separa as duas situações e não há como passar de um lugar para o outro. Não estamos muito longe daquilo que entendemos hoje como paraíso e inferno.
12. Essa denúncia sobre a riqueza e o luxo vem ecoando ao longo dos séculos, de várias maneiras e nós a sentimos em nosso tempo. Mas Aquele que nos narra essa parábola está preocupado tanto com os ricos como com os pobres, talvez mais com os primeiros que os segundos, que já estão sob seu olhar.
13. Jesus não está condenando a riqueza em si, que é um bem, não um mal, mas o uso que se faz da mesma. Condena o egoísmo desmedido que torna impermeável o sentimento de solidariedade humana. No episódio de Zaqueu, Jesus deixa claro que há possibilidade de salvação.
14. Dar a metade dos bens hoje pode significar criar postos de trabalho e não ficar mandando dinheiro para o exterior para escapar dos impostos. Ainda hoje o rico da parábola tem cinco irmãos (muitos) no mundo. É a esses que a liturgia fala por meio de Moisés, dos profetas e sobretudo através de Jesus.
15. Que esse convite a dar-nos conta do pobre Lázaro não caia no vazio também em nós, mas encontre eco em nosso coração, pois há confrontos e fome em muitas partes do mundo; somos um pouco, todos nós, irmãos do rico epulão.
* com base em texto de Raniero Cantalamessa
Pe. João Bosco Vieira Leite